Estradas de Silêncio e Sonhos

Viajar o silêncio das palavras ao vento. Descobrir o som do amor nos cantos da praça. Sonhar a esperança das cores em vozes dissonantes. Questionar o insensato. Ver, ouvir, tocar, pensar, agir, criar, estar, ser. Viver!

Para além de uma história – Só Garotos (Patti Smith) 08/05/2018

Só Garotos

Existem muitas obras incríveis no mundo, criadas por pessoas sensacionais, mas são poucas aquelas que nos arrebatam tão profunda e provocativamente. Aqui está um pequeno eco de um desses momentos experimentados:

Para quem me conhece, sabe de algumas de minhas paixões… entre elas a mais antiga de todas e que me acompanha como um vício, é a paixão por livros. Aprendi a ler muito cedo, minha história pessoal sempre foi rodeada de livros e como estudar é minha “profissão” mais assídua, eles só ganharam cada vez mais espaço nas minhas estantes. O cheiro do papel enquanto leio e manuseio as páginas, são alimentos para minha alma. Adoro ser ludibriada por boas histórias, amo os bons contadores de histórias e cada vez menos escritores e dramaturgos sabem conduzir uma com maestria. Em tempos pós-dramáticos as nossas páginas ganham roupagens, vidas fragmentadas e entrecortadas que pouco permitem o mergulho nos arquétipos e metáforas que, por exemplo, a tragédia ou a realidade fantástica nos propõem, esta última um dos estilos preferidos.

Depois de uma mudança de morada que encheu metade de um caminhão só com caixas de livros e o desejo de ter menos coisas e mais experiências, eu queria poder me desapegar deles todos. Há meses numa briga interna em não me render à assinatura do Clube do Livro TAG, acabei não resistindo e lá fui eu… mais livros ao invés do desapego.

Ansiosa pela primeira edição, mais pelo prazer de abrir o kit e ver os mimos do mês do que pelo livro a ser recebido em si, aguardei sua chegada. Atrasou por alguma razão a chegada do kit, mas veio. Abri e foi um pouco decepcionante, a princípio: um livro escrito pela poeta e cantora Patti Smith, um universo musical pelo qual não tenho a menor afinidade. Deixei ele encostado e fui começar pelo mimo, também uma obra da mesma autora, que logo de cara não me conquistou. Mas fiz um juramento: se eu não lesse os livros que chegassem e eles fossem se acumulando em meu quarto, cancelaria a inscrição. Fiz um esforço, a capa tem cores que me atraem. Vamos lá!

O que se sucedeu, ou melhor, como… eu não sei explicar! Eu vivi, junto de Patti (porque já estamos muito íntimas), uma verdadeira jornada. Ela conta a história dela com o fotógrafo Robert Mapplethorne (uma pena ele ter falecido sem ler esse presente). Desde o momento em que ela decide ir para Nova York e o conhece, até o falecimento dele, após mais de 20 anos de amizade. É basicamente isso, um diário muito bem narrado. Mas… vai para muito além disso…

A narrativa foi me pegando sem que eu percebesse o que estava acontecendo. Estou lendo apenas um diário, é o que pensava. Não, não é apenas um diário, é o relato do surgimento de uma geração incrível de artistas. Ela nos contar a experiência do Hotel Chelsea, estar rodeada de uma galera como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Bob Dylan, Bruce Springsteen, sem saber que eles viriam a ser quem se tornaram… ver seus amigos partindo tão cedo por causa das drogas e da doença que assolou as décadas em que viveram… mas acima de tudo, a dedicação e entrega voraz que ela e Robert tinham pela arte, foi o que me arrebatou.

Não foi uma vida molezinha. Passou muita fome, morou em lugares insalubres, passou por depressão, angústias e viu muita gente que amava partir, mas sempre sempre mantendo o sacerdócio de se dedicarem a algo que os preenchia. E essa resistência e superação por algo que acreditavam, buscando dia-a-dia inspiração e caminhos que os conduzissem as suas paixões, criando sem parar e como podiam… isso me arrebatou. Mesmo compreendendo as dificuldades pelas quais eles tinham que transpor com todas as suas forças, mesmo assim, consigo sentir ali uma ode à liberdade. Uma vida liberta e dedicada e que me fez questionar muito o que eu de fato faço por aquilo que amo e que sinto ter nascido pra fazer: criar. Seja no teatro, nos desenhos, na escrita, o quanto eu realmente estou disposta a passar e a viver por aquilo que é o meu respiro?

A magia de ver algo surgir a partir de um papel em branco e de repente ter uma peça, um texto, um roteiro, uma pintura é o que mais me encanta no ofício do artista criador. Batalho diariamente para me manter sã durante a jornada, porque as vicissitudes da vida nem sempre apresentam o melhor cenário para a criação. E não fazer o que amo fazer é como entrega a minha existência para a loucura. É preciso resistir… dia após dia, resistir… ver nas madrugadas o meu melhor aliado e nele entrar em contato com meus silêncios… e, então, persistir um tanto mais e resistir.

Patti Smith me colocou diante de um grande espelho e me fez deparar com meus monstros internos e descobrir que nada me alimenta mais do que a arte. Me fez perguntar quanto tempo ficarei esperando a vida me proporcionar as condições ideiais para criar o que e como eu acredito. Pois, as condições ideais nunca acontecerão, ainda mais vivendo no país que vivo.

Patti foi o meu Jimi Hendrix e com ela eu vivi essa grande aventura: quis ouvir as mesmas músicas que ela, estar nos mesmos lugares, ler os mesmos livros. Em Só Garotos eu fui Patti Smith junto com ela e é por isso que eu amo os livros. Quando uma obra tem a potência de ser mais que apenas uma expressão e passa a ser uma experiência para quem entra em contato com ela.

Que possa criar coisas com essa potência!

Quando fechei o livro após ler a última página, estava aos prantos, em plena catarse.

Obrigada Patti, obrigada TAG e curadora.